Por mais que Leandro abrisse os olhos, tudo o que ele encontrava por todos os lados era uma infinita escuridão. Tinha passado mais de um terço da vida completamente cego, e só tinha quatorze anos.
Em uma fria manhã, o menino sentou-se num sofá do saguão do pequeno hotel de sua mãe e passou a ouvir o rádio, acreditando estar sozinho naquele ambiente. Curtia a música baixinha, até que escutou a voz de outro menino, certamente um pouco mais novo, espantado:
— Olha só que sinistro este livro que deixaram aqui em cima: as páginas estão todas em branco!
Eduardo, sem enxergar coisa alguma, mas já sabendo do que se tratava, riu e voltou o rosto para o lado de onde vinha a voz:
— Não está em branco. É um livro em Braille — explicou. Ele sempre pegava algum documento deste tipo, na classe especial onde estudava, para praticar a leitura em casa.
— E o que é isso? Um código secreto? — perguntou a voz na escuridão.
— Nunca ouviu falar? O Braille é uma linguagem criada para que os cegos possam ler. Se não percebeu, eu sou um deles.
A voz no outro sofá fez uma breve pausa, talvez devido ao embaraço sentido, para só então se manifestar:
— É, eu estranhei mesmo você estar usando esses óculos escuros aqui dentro. Achei que fosse meio metido a estrela de cinema, ou coisa parecida. Você não enxerga nada mesmo?
— Nadinha.
—Desde quando?
— Faz exatamente quatro anos, oito meses e quatorze dias. Mas estou na lista de espera de um transplante. Preciso de olhos bons para poder ser médico. Assim que der tudo certo, vou voltar a ver como antes.
— E como é que você lê desse jeito?
O garoto cego pediu que o outro lhe emprestasse o livro, que logo foi depositado cuidadosamente sobre seus joelhos. Leandro abriu em uma página qualquer e, com a ponta dos dedos, passou a decifrar os caracteres salientes do papel e a enunciar o conteúdo em voz alta, em ritmo pausado.
— Das ja-ne-las ve-jo o Se-na que cor-re ao lon-go do meu jar-dim por trás da es-tra-da...&
O outro menino espantou-se:
— Nossa, que fantástico! Você não enxerga nada, mas pode ler palavras que eu não vejo. Isso é uma espécie de mágica!
Na conversa que seguiu, Leandro explicou que aquele hotel era de sua mãe e que, portanto, ele vivia ali.
Era sempre bom ter alguém interessante com quem conversar, mas também era um pouco triste acostumar-se com os hóspedes. Na maioria das vezes eles iam embora logo que começavam a demonstrar ser figuras interessantes, e nem ao menos podiam deixar seus rostos na lembrança do garoto cego. Foi por isso que Leandro decidiu não querer saber muito a respeito dessas brevíssimas amizades: não importava de onde vinham, para onde iam, o que estavam fazendo na cidade, e nem ao menos seus nomes. Tudo o que interessava era a conversa que mantinham naqueles poucos instantes. Achava que desta forma não teria como sentir saudades.
Contudo, naquele dia algo parecia estar diferente. Uma estranha sensação fez com que Leandro acreditasse que aquele menino ficaria com ele por mais tempo.
— Como foi que você ficou cego? — quis saber a voz.
Leandro se surpreendia quando lhe perguntavam isso tão espontaneamente. Era um tanto difícil alguém questionar algo delicado assim, por mais que a curiosidade fosse óbvia. Mas aquela voz — talvez por saber que os destinos de ambos se separariam tão rápido como se cruzaram, ou talvez por se sentir totalmente à vontade com o novo amigo — não teve o escrúpulo de permanecer com a dúvida.
E por falar disso com tão pouca frequência a estranhos, aquela questão ainda era um tanto dolorosa para Leandro. Ele arrependia-se mortalmente do dia em que, brincando de fazer aquelas velhas bombas com garrafas plásticas e cal, uma delas explodiu perto demais de seu rosto. A última coisa que enxergou foi a total brancura de milhares de partículas do pó espirradas em seus olhos, como flocos de neve, para depois não conseguir ver mais nada deste mundo. Com aquela explosão sua vida anterior adquiriu a aura de um sonho, e foi isso que tentou explicar para a companhia que lhe fazia perguntas naquela manhã de inverno.
A voz permaneceu em silêncio por alguns instantes após o relato. Para o cego, havia sido afetada pelo seu drama e não sabia mais o que dizer — era a reação mais comum a todos que ouviam sua história.
Mas a conversação ainda continuaria.
— Você disse que se lembra do tempo que enxergava como se fosse um sonho. Mas foi um sonho bom, daqueles que a gente quer sempre voltar, ou dos ruins, que é melhor esquecer?
Já isso era a primeira vez que alguém perguntava. As únicas lembranças da visão que vieram à mente de Leandro foram de ótimos momentos entre amigos, subindo em árvores, jogando bola, correndo pelo mato com seu velho cão, pescando com o falecido pai, fugindo de um enxame de abelhas após atirar uma pedra na colmeia...
— Um sonho bom, com certeza.
E continuou por mais um breve tempo recordando esses agradáveis e coloridos dias, de modo que uma lágrima ameaçou rolar pelo rosto.
Sem saber se o outro menino havia percebido o prenúncio de choro, Leandro enxugou os olhos ocultos pelas lentes dos óculos e ouviu, da voz:
— Ah, ser cego não deve ser tão ruim assim se você consegue se lembrar de quando enxergava. Eu sempre tive pena dos cegos de nascença: imagine não saber como são as coisas! Como será viver sem nunca ter visto a própria aparência no espelho? Deve ser quase como não existir!
Eduardo concordava quanto à afirmação, mas também era a primeira vez que alguém lhe dizia algo tão sincero, sem medo de medir as palavras.
— Além do mais — continuou a voz — há tanta gente cega que faz coisas tão extraordinárias, não é? Tem aquele cantor negro que toca piano, e até um super-herói dos quadrinhos, que se veste de vermelho...
— O Demolidor — completou Leandro. — Sempre falam dele para mim, mas não tive a chance de ler seus gibis, enquanto podia.
— São muito legais. Ei, por que você quer ser médico?
— Bem, isso veio depois que fiquei cego. Passei um bom tempo internado em hospitais, fiz cirurgias e precisei de muita gente cuidando de mim. Nem todos os médicos e enfermeiras eram legais, mas alguns eram ótimos, que me faziam sentir bem só com algumas palavras, entende? Acho que eu queria mesmo era poder ajudar os outros, assim como eles fizeram e continuam fazendo comigo.
Leandro sentia-se muito bem enquanto falava sobre seu sonho, apesar dos desafios que teria que vencer até chegar lá. Talvez o menino com quem conversava duvidasse de sua capacidade, mas esses admirados médicos, além de alguns professores e, principalmente, sua própria mãe, sempre lhe diziam para continuar acreditando que um dia voltaria a enxergar, e que tudo daria certo em sua vida.
A voz no outro sofá, depois de ouvir o relato do garoto cego, resolveu também abrir-se com o recém-conhecido, e fez uma confissão.
— Sabe, eu também tenho um problema. E acredito que é bem mais grave que o seu. Na verdade meus pais estão muito preocupados, quase sem esperanças já.
— Ah, é? Mas você parece tão bem! — admirou-se Leandro.
— Obrigado. É que você enxerga tudo de outro jeito. Desculpe, mas não vou falar mais nada sobre esse assunto, porque prefiro que você continue me vendo assim.
Qualquer um sentiria grande curiosidade por saber qual era o problema daquele menino. Com Leandro não foi diferente. Mas assim como ele queria ser reconhecido como um ser humano igual a qualquer outro — e não como um simples deficiente — ele logo deixou de pensar nas possíveis deformidades físicas do dono daquela voz, e concluiu que aquele menino lhe fazia sentir-se muito bem, independentemente de como fosse a saúde dele, ou sua aparência.
— Ta bom, não precisa falar. Vamos conversar sobre outra coisa, então.
Nisso, surgiram alguns passos no corredor, e o garoto avisou ao cego que precisava ir embora.
— Tenho que ver algumas pessoas antes de partir. Foi legal falar com você.
Leandro, que durante os minutos de bate-papo acostumara-se com aquela presença ao seu lado, quase teve o ímpeto de perguntar o nome do interlocutor. Na verdade o que mais queria saber era se teriam outra oportunidade para conversar, ou se aquela era a primeira e a última vez. Mas sentiu que se desapontaria caso esperasse algo mais daquele misterioso garoto.
— A gente se vê por aí — a voz falou, já à distância, e sumiu pela porta.
Os passos que se aproximavam eram inconfundivelmente os da mãe de Leandro. Ela chegou muito próximo ao filho e, mesmo nas profundezas do escuro em que vivia, ele sentiu que ela tinha algo importante a lhe dizer.
— Mãe? Está tudo bem?
Ela pigarreou um pouco, como sempre fazia antes de dar alguma notícia não muito boa, e então tomou coragem para falar:
— Sim, filho. Comigo está tudo bem. E com você?
O menino sabia que havia algo errado na voz dela.
— Comigo tudo ótimo. Acabei de conversar com um hóspede muito bacana. Sabe se ele está aqui com os pais, e até quando eles ficam?
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A mãe, estranhando aquelas falas do garoto e temendo dizer algo impróprio, obrigou-se a falar aquilo que incomodava seu íntimo.
— Lê, meu anjo, achei que você soubesse: não há ninguém hospedado aqui hoje!
— Como não, mãe? E quem era esse menino?
A mãe o fitou, procurando entender o que se passava, e revelou:
— Eu passei duas vezes pelo saguão nos últimos dez minutos, achando que você estava cantando baixinho a música do rádio, ou ensaiando as falas para algum teatro da escola, e não quis interrompê-lo, pois sabia que você teria vergonha. Mas agora não aguentei e vim para tirar a dúvida. Filho, você estava falando sozinho todo esse tempo...
O telefone tocou naquele instante, cortando a frase da mãe preocupada, que foi atender ao aparelho. Leandro ficou processando o que acabara de ouvir e lembrou com nitidez da corrente de ar que havia passado por ele há um minuto, denunciando que o dono da voz com quem conversara havia se deslocado para a porta de saída. Então ele levantou-se do sofá e, com a ajuda da bengala, para a porta dirigiu-se.
A fechadura ainda estava trancada, então Leandro a abriu e pôde sentir em seu rosto o frio daquela manhã. O vento parecia querer brincar com o garoto, desarrumando seus cabelos e assoviando em seus ouvidos, e assim permaneceu por alguns segundos, até lhe arrancar um sorriso.
De repente tudo ficou calmo lá fora, num pacífico silêncio.
Em pensamento, o cego perguntou para o nada: “Você vai voltar?”. Mas não houve qualquer resposta, e o que lhe restou foi regressar para dentro e fechar a porta.
Após aquilo, mãe e filho voltaram às suas atividades normais, recebendo novos hóspedes, e não mais falaram daquele insólito incidente.
Leandro chegou a manter alguns diálogos com os novos fregueses do hotel nos dias seguintes, porém não achou que eles sentiam-se à vontade com sua presença, pois sempre mediam muito as palavras antes de tocar no assunto da cegueira.
Dias depois do ocorrido, quando Leandro estava outra vez sentado no sofá do saguão, o telefone começou a tocar. Ao mesmo tempo em que sua mãe corria para atender, um sussurro em seus ouvidos fez com que se arrepiasse da cabeça aos pés. As palavras pronunciadas foram: “Ninguém precisa de olhos para sentir o vento, um abraço, a chuva ou a música. Pense nisso quando for médico e estiver cuidando de meninos como eu”.
Ainda paralisado com o choque, ouviu a mãe soluçar ao telefone, dizendo coisas como “o que?”, e “ai minha nossa”, e então “que triste!”, e fazendo perguntas, e depois “em coma?”, e “precisamos fazer uma oração”...
Não era possível entender muita coisa, nem do que se passou antes, e muito menos sobre o que se tratava aquela conversa telefônica, e Leandro só conseguiria a resposta depois que ouviu o gentil clique metálico do fone sendo depositado ao gancho.
A mãe, com a voz emocionada, lhe disse:
— Filho, meu amor. Um menino da sua idade, que ficou em coma por duas semanas, acabou de falecer. Os pais dele autorizaram a doação. Você vai voltar a enxergar, querido!
Todos precisam de bons olhos para ver algumas belezas do mundo. Mas conforme um grande sábio costumava dizer, há coisas que só são visíveis para aqueles que sabem olhar mais além; estes, não utilizam um par de olhos, mas a sutileza da alma.
L.F. Riesemberg In: Contos Fantásticos.
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